Tomo-me na ousadia de tecer alguns comentários sobre o espetáculo teatral “SADE” de Gil Vicente Tavares, tomando como linha de raciocínio a minha compreensão lógica dos efeitos transformadores que espetáculos deste quilate representam em meio a tempos de crise de ideias e ideais. Subvertendo todo e qualquer paradigma pré-estabelecido, questiono-me toda a ordem da educação religiosa radical, dentre outros ofícios de manipulação aos quais há milenares anos a sociedade humana vem se subpondo.
Cenas fortes, diálogos eloquentes, olhares avulsos, universos paralelos… Dentre tantos outros aspectos que vão desde detalhes da cena à interação imaginária com a plateia. A vida que se apresenta no set teatral, contada da e pela perspectiva histórica de um dos personagens literários mais interessantes da história mundial – o Marques de Sade – revela em sua essência a crise subjetiva sofrida pelo homem desde os primórdios do seu surgimento… E digo primórdios do seu surgimento, mesmo, enquanto sujeito.
Para ‘cavucar’ e cutucar as esferas assombrosas do desejo superposto em si mesmos, abrindo mão das indecências puritanas impostas pelos tempos verbais (em que dizer é muito mais do que fazer – que Bauman designou como “tempos líquidos”), pelos tempos de ocultismo em que o tabu é lei e a repressão injustificada eram provas de honra, Sade nos dá a ligeira impressão de que para sermos felizes é preciso arriscar, é preciso peneirar sem rede – um furo que vaza para além do inconsciente e ultrapassa os limites da borda neurótica. Para ser feliz é preciso ter orgasmos!, nos diz sabiamente, nos fazendo pensar sobre a inutilização do gozo perverso.
Gozar de si… Vazar o gozo ao outro… SADE nos permite ainda pensar sobre a nossa perspectiva humana e no nosso funcionamento perverso que entremeadas vezes nos passam despercebidas por pura conveniência: quem muito critica é quem procura formas sádicas para não desejar. Trans-gres-são: Múltiplas faces que usamos para as mais diversas realidades contemporâneas em que vivemos.
O Teatro Nu não poderia ter outro nome, pois impõe diz-ordem às camadas poliglotas (de mesmas palavras) às leis impostas e que, cada vez mais, retiram do desejo o seu imperativo de ser acoplado ao seu sujeito. Sade em Lacan, veio numa leitura de transgressão da ética… Ou melhor, de uma “Ética da Transgressão” como entitulou Eduardo Riaviz, em sua dissertação de mestrado sobre esta figura provocativa.
“Freud e a psicanálise retomarão os termos de sadismo e masoquismo não só para classificar duas modalidades de estrutura perversa, mas também para definir uma posição originária do sujeito” (Riaviz, 2000). E em que essa ‘posição originária do sujeito’ reflete às duas modalidades de estrutura perversa, bem como sua função no dinamismo psíquico dos ditos neuróticos? Talvez, um caminho possível para a resposta seria falarmos sobre fantasia, desejo e gozo.
Fantasia, desejo e gozo. Conceitos que carregam a essência do estudo psicanalítico da expressão que aponta para um equipamento estrutural do indivíduo-futuro-sujeito. Gil nos apresenta um Sade muito mais contemporâneo, tal qual quando existiu; pois este, nos parece viver nos tempos de hoje, imposto pelas regras que definem a loucura e encalacram o sujeito em masmorras castradoras de impossível-gozo. O homem contemporâneo vive em relações sádicas e perversas em prol da satisfação que firmam a virtualidade como principal forma de contato.
São tantos os pontos que posso aqui levantar e citar para discutirmos que me perco em meio a palavras do texto narrado. Só tenho a agradecer à arte por ser assim, um representante possível do saber que permite ao homem representar as suas mais lindas histórias de forma tão delicada. Pois assim toca a alma, toca o verbo, se faz carne e habita entre nós. Parabéns á Gil pela construção e aos atores que deram um show de apresentação.
Dica eloquente: deliciem-se com SADE, saia para tomar um vinho e estenda o jantar ao café da manhã! Sejam felizes!… Se é que me entendem!
Em cartaz de 03 SET A 10 OUTU | QUINTA A SÁBADO | 20H | ICBA – Corredor da Vitória
Por Cauan Reis